sexta-feira, 8 de março de 2019

Integrantes de facção criminosa são condenados por tortura após realização de 'tribunal do crime' em Presidente Prudente

Sentença aponta, ainda, delitos de fraude processual e coação no curso do processo. 'Julgamento' foi em janeiro de 2018, no Conjunto Habitacional João Domingos Netto.

Por Stephanie Fonseca, G1 Presidente Prudente



Cinco integrantes do Primeiro Comando Capital (PCC) – presos durante uma investigação de um “tribunal do crime” entre facções, ocorrido em janeiro de 2018, no Conjunto Habitacional João Domingos Netto, em Presidente Prudente – foram condenados pela Justiça, em primeira instância, por integrarem a organização criminosa e, separadamente, pelos crimes de tortura, fraude processual e coação no curso do processo.

A sentença proferida pelo juiz auxiliar da 3ª Vara Criminal do Fórum da Comarca de Presidente Prudente, Fábio Mendes Ferreira, foi publicada nesta quarta-feira (6).

Conforme o documento ao qual o G1 teve acesso, as condenações foram as seguintes:

Indivíduo 1: sete anos, 11 meses e 20 dias de reclusão, sete meses de detenção e pagamento de 46 dias-multa pelos crimes de tortura, fraude processual, coação no curso processo e por integrar organização criminosa;

Indivíduo 2: seis anos e seis meses de reclusão, seis meses de detenção, e pagamento de 41 dias-multa pelos crimes de tortura, fraude processual, coação no curso processo e por integrar organização criminosa;

Indivíduo 3: cinco anos e seis meses de reclusão e pagamento de 11 dias-multa pelo crime de tortura e por integrar organização criminosa;

Indivíduo 4: seis anos e cinco meses de reclusão e pagamento de 12 dias-multa pelo crime de tortura e por integrar organização criminosa;

Indivíduo 5: quatro anos e um mês de reclusão e pagamento de 12 dias-multa por integrar organização criminosa.

Os cinco homens – um de 23, dois de 25 e outros dois de 26 anos – já estão presos e o regime inicial de cumprimento das penas para todos os indivíduos será o fechado. Foi indeferido pela Justiça o direito aos réus de apelação em liberdade, pois estão “presentes os requisitos da garantia da ordem pública e para assegurar a aplicação da lei penal”.

Em depoimento, a vítima afirmou que a todo tempo implorou pela própria vida e "eles apenas riam".

"Deus me livre, nasci de novo (sic)", disse o rapaz torturado.

Tortura

No dia 2 de janeiro de 2018, por volta das 23h, até a madrugada do dia 4 de janeiro do mesmo ano, em uma residência do bairro João Domingos Netto e em um sítio (zona rural) não identificado os cinco condenados, “previamente ajustados” e “mediante sequestro”, constrangeram a vítima com emprego de violência e grave ameaça, situação que lhe causou “sofrimento físico e mental”. O objetivo do grupo era obter uma “confissão”.

Foi apurado pelas autoridades que o indivíduo 1 entrou em contato com a vítima no Parque do Povo, em Presidente Prudente, e a convidou para “tomar uma cerveja”.

Segundo consta do documento obtido pelo G1, o indivíduo desconfiava de que a vítima pudesse pertencer à facção criminosa “Família do Norte (FDN)”, rival do PCC. O condenado, então, contatou outros integrantes da mesma organização, através de mensagens de celular, para que juntos “julgassem” a vítima.

O indivíduo 1 se fez parecer amigo da vítima e a chamou para passear pela cidade em seu veículo, um Ford Fiesta. A vítima aceitou e foi levada a uma residência no bairro João Domingos Netto, onde os demais condenados a aguardavam.

Assim que desceu do carro, os denunciados passaram a xingar a vítima e a acusar de pertencer à facção rival, questionando-a: “Veio aqui pegar nóis? (sic) Aqui é comando, maluco, aqui é partido, é PCC (sic)”.

Quarto escuro

De acordo com a decisão judicial obtida pelo G1, a vítima foi colocada em um quarto escuro, onde os indivíduos gritavam com ela, apontavam-lhe o dedo, bem como a ofendiam e a ameaçavam de morte por diversas vezes. Eles diziam que o rapaz deveria confessar que pertenceria à facção “Família do Norte” ou então o manteriam sequestrado e o matariam.

“Os denunciados repetidamente diziam que eram do ‘PCC’ e que eram os mais fortes, que não permitiriam que nenhum ‘FDN’ chegasse na cidade”, conforme o documento.

Foi relatado pela vítima que, durante a tortura, os denunciados mantinham contato por gravação ou texto pelo aplicativo WhatsApp com uma pessoa não identificada, que lhes instruía e orquestrava a ação, “exercendo posição de liderança”.

“Tal pessoa, ao ser informada de que a vítima não confessava, disse: ‘Você sabe o que fazer. Dá um jeito nele. Sobe ele’ (sic)”, diz.

Com medo, a vítima fugiu do grupo e se escondeu em um imóvel próximo, que estava desabitado, e se escondeu sobre o forro da casa.

Porém, sua localização foi descoberta pelos indivíduos em virtude de marcas de sangue e, enquanto procuravam pelo rapaz, iniciou-se uma aglomeração no local e algumas pessoas começaram a chamar o agredido de “estuprador” e de “FDN”.

No momento, segundo consta na descrição dos fatos, cerca de 50 pessoas se reuniram ao redor da casa, incitando a busca pela vítima, “numa espécie de linchamento”. Os indivíduos 1 e 2 foram os primeiros a entrar no local procurando a vítima.

Posteriormente, os indivíduos 3 e 4 chegaram ao local em um veículo GM Astra e auxiliaram na busca pela vítima e apoiaram os demais, denunciados e populares não identificados, na tortura.

Enquanto o grupo procurava a vítima, o indivíduo 2 iluminava o interior da residência com seu aparelho celular. O indivíduo 5 também invadiu a casa, enquanto gritava para que pegassem o suposto FDN.

Durante a confusão, uma pessoa não identificada, com um tijolo em mãos, também incentivava os demais a “pegarem” a vítima, enquanto o indivíduo 3 auxiliava nas buscas.

Arremesso de tijolos

O grupo localizou o esconderijo da vítima e, então, os indivíduos 1 e 2, bem como os outros integrantes da associação, subiram no telhado da casa e passaram a arrancar as “pesadas” telhas de concreto, arremessando-as contra a cabeça e o pescoço da vítima, até que ela caiu.

“Já no chão da residência, a atingiram com chutes e pauladas. A vítima fingiu um desmaio e então os denunciados a levaram para o porta-malas do veículo Ford Fiesta”. O veículo era conduzido pelo indivíduo 1, que tinha o indivíduo 2 como passageiro.

Testemunhas relataram que a vítima sangrava muito quando foi carregada para o veículo, inclusive pelo indivíduo 1. “O laudo pericial no local dos fatos evidenciou que havia muito sangue no local, tendo sido encontradas pegadas”.

Os tênis dos denunciados foram apreendidos durante uma operação policial, ocasião em que foi solicitado laudo pericial complementar para comparar as pegadas com os calçados, conforme publicado pelo G1 no dia 26 de janeiro de 2018.

Olhos vendados e agressão

Os indivíduos vendaram os olhos da vítima e parte deles, junto aos indivíduos 1 e 2, a levaram para um matagal, onde, por telefone, o grupo recebeu ordens de uma pessoa de “hierarquia superior na facção ‘PCC’, para investigarem antes de matar a vítima”.

Pouco antes de amanhecer, o grupo levou a vítima para uma casa afastada e a colocou em um quarto, onde continuou dizendo para confessar que pertencia à facção FDN.

“A vítima estava com sede e implorava por água, mas não lhe davam. Disseram-lhe que iria ficar um ano em cativeiro se não confessasse, causando-lhe grave sofrimento mental, além das dores que suportava devido ao espancamento”, segundo o documento obtido pelo G1.

Durante a ação, os indivíduos ainda mandaram que a vítima telefonasse para seus parentes próximos e lhes informasse de que estava tudo bem e que estava em um churrasco.

Por fim, na madrugada do dia 4 de janeiro, o grupo libertou a vítima, deixando-a em uma rua próxima à da casa de seu pai.

“No bairro João Domingos Netto, a população acreditava que a vítima tivesse morrido, e o indivíduo 2 chegou a se vangloriar de ter supostamente matado a vítima”, de acordo com a decisão judicial.

Uma camiseta “impregnada de sangue” foi apreendida no primeiro local onde houve a tortura e a peça foi reconhecida pela vítima.

Crime de fraude processual
Os indivíduos 1 e 2 também foram condenados pelo crime de fraude processual, pois consta que entre os dias 2 e 8 de janeiro do ano passado, no bairro João Domingos Netto, ambos inovaram (modificaram) artificiosamente o estado do veículo Ford Fiesta, a fim de induzir a erro o juiz e o perito.

“O veículo supracitado foi utilizado para transportar a vítima do crime de tortura mediante sequestro, sendo levada para cativeiro em um sítio. Ocorre que, devido ao espancamento sofrido pela vítima, o veículo, notadamente o porta-malas, ficou sujo com o sangue da vítima. Os denunciados 1 e 2, então, lavaram o veículo, para induzir a erro o perito e, posteriormente, o juiz, fazendo parecer que a vítima não teria sido transportada no automóvel”, explica a decisão.

Coação no curso do processo
Ainda foi constatado que entre 2 de janeiro e 17 de janeiro do ano passado, no bairro João Domingos Netto, os indivíduos 1 e 2 passaram a realizar graves ameaças contra uma testemunha, com o fim de favorecer interesse próprio.

Os denunciados 1 e 2, “após tomarem conhecimento de que testemunhas protegidas teriam indicado seus nomes como autores do crime de tortura, passaram a dizer a pessoas moradoras do bairro João Domingos Netto que a advogada que os defendia é do ‘PCC’ e que descobriria quem eram as pessoas que prestaram depoimento sob proteção. Afirmaram que ‘acertariam as contas’ com quem os houvesse delatado, ameaça que chegou ao conhecimento de diversas pessoas”.

Com a situação, investigadores de polícia mencionaram em seus relatos que as pessoas do bairro estavam “amedrontadas”.

Organização criminosa
De acordo com a decisão obtida pelo G1, consta que, desde data incerta, os cinco condenados integraram, pessoalmente, a organização criminosa armada, autodenominada Primeiro Comando da Capital (PCC), “com atuação transnacional, que tem como finalidade a prática de crimes, especialmente os de tráfico de entorpecentes, delitos contra o patrimônio e relacionados à aquisição, posse, porte, guarda, manutenção em depósito, transporte, fornecimento, empréstimo e emprego de amas de fogo, além de crimes contra a vida de agentes públicos, corrupção ativa, etc.”, com comando, liderança e as principais ordens proferidas “a partir do interior da Penitenciária II de Presidente Venceslau”.

Segundo a denúncia oferecida à Justiça, há diversas provas de que os denunciados integram, representam e atuam em nome do PCC, facção criminosa constituída nos presídios paulistas na década de 1990.

Desde o início do crime, foi constatado que eles receberam ordens de uma pessoa “hierarquicamente superior da facção para torturar a vítima, a fim de que ela confessasse pertencer à facção ‘Família do Norte FDN’, possibilitando eventual extração de informações da vítima, que poderiam interessar à facção”.

Além disso, quando os denunciados 1 e 2 coagiram as testemunhas protegidas, ameaçando um “acerto de contas” com elas quando descobrissem as suas identidades através da advogada de defesa, eles novamente mencionaram que pertencem ao PCC, “até como forma de intimidação”.

Foi identificado que o indivíduo 1 é homem de confiança da facção criminosa e que exercia uma posição de liderança em relação aos demais, “pois tomou a iniciativa de dirigir o veículo Ford Fiesta para retirar a vítima do local, bem como mandou que a vendassem”.

Os indivíduos 3, 4 e 5 apenas executam as ordens recebidas. No dia 2 de janeiro de 2018, os denunciados 3 e 4 atuaram como apoio para que “julgassem” a vítima.

Tumulto na prisão

Outra situação foi durante o depoimento do indivíduo 4, quando afirmou que “só poderia ir para penitenciárias do PCC” e que “não entraria em penitenciária de outra facção”.

Os denunciados 1, 2 e 3, quando foram detidos na Cadeia de Presidente Venceslau, em virtude de prisão temporária, causaram tumulto na unidade prisional e declaravam pertencer à facção criminosa paulista. “Eles também disseram para agentes penitenciários tomarem cuidado, porque o PCC está em todos os lugares, bem como incitaram os demais detentos a tumultuar a cadeia e mudar os regulamentos internos desta".

Tal comportamento indica que os três (indivíduos 1, 2 e 3) têm um papel relevante na facção, “pois este tipo de ação demanda poder sobre os demais integrantes da organização criminosa”. “Todos esses fatos revelam vínculo sólido e permanente entre os denunciados, integrando a organização criminosa PCC”, destaca o juiz.

Relato da vítima

A vítima, que é protegida pela Justiça e por isso não teve nome ou idade divulgados, contou às autoridades que na época dos fatos seguiu para Presidente Prudente para trabalhar com seu pai e assumiu ser um usuário de maconha.

Assim, no dia 2 de janeiro, foi até o Parque do Povo para tentar encontrar alguém que vendesse drogas.

Na ocasião, a vítima se deparou com um indivíduo e lhe perguntou se vendia ou se conhecia alguém que vendesse maconha. No decorrer dos fatos, o tal sujeito passou a questioná-la sobre seu sotaque e a cidade onde morava, entre outras perguntas.

A vítima disse que respondeu normalmente àquelas questões, contudo, o referido indivíduo perguntou-lhe se conhecia alguém que integrasse uma facção criminosa denominada FDN e ela respondeu que não.

Na sequência, de acordo com o relato da vítima, o indivíduo lhe disse que pretendia apresentá-la a alguns amigos, a levando até uma residência onde havia outras pessoas.

Na casa, a vítima passou a ser novamente questionada se pertencia à FDN e se estaria em Presidente Prudente para matar algum membro do PCC.

A vítima assegurou que, apesar de negar ser integrante de facção criminosa, os sujeitos pegaram uma arma de fogo e lhe ordenaram que entrasse em um carro, pois iriam "dar uma volta". Disse ainda que se negou a entrar no veículo, mas recebeu um soco no pescoço e, depois, teve os olhos vendados.

Conforme o documento ao qual o G1 teve acesso, a vítima relatou que, antes de entrar no carro, ouviu um barulho de outro veículo se aproximando e aproveitou a oportunidade e gritou: “Olha a polícia!”.

No momento, os indivíduos “se distraíram” e a vítima aproveitou para fugir daquele local. Ela contou que pediu ajuda em algumas residências do bairro, mas ninguém lhe atendeu.

Foi quando adentrou uma residência desabitada e se escondeu no forro, porém, o rapaz foi encontrado pelo grupo e passou a ser agredido “até perder suas forças”. “Mencionou que as agressões somente cessaram após fingir que tinha desmaiado. Narrou que escutou um dos indivíduos dizendo: 'Vamos ver quem é esse cara primeiro, se está com alguém, e o que veio fazer aqui'. Falou que na sequência foi colocado no porta-malas de um carro e depois conduzido até um matagal”.

Também foi relatado pela vítima que durante o trajeto um dos indivíduos, através do telefone celular, recebia de uma terceira pessoa orientações de como agir.

Após dois dias, de acordo com as narrativas da vítima, os indivíduos chegaram à conclusão de que ela não integrava a facção criminosa FDN e que iriam libertá-la. Todavia, o grupo a advertiu de que não era para procurar a polícia, pois, caso contrário, sabiam onde encontrá-la.

“[A vítima] Falou que, durante o tempo em que esteve em poder de referidas pessoas, recebeu água, comida e medicamentos para seus ferimentos. Narrou que foi libertado próximo à casa de seu genitor, e nesta ocasião os sujeitos lhe devolveram seu telefone celular e lhe deram o prazo de 24 horas para ir embora de Presidente Prudente”.

Após ser deixada no local, a vítima contou que seu pai a levou até um hospital, onde inventou uma versão sobre a causa de seus ferimentos. Foi medicada e liberada, e no dia seguinte foi embora de Presidente Prudente.

Justiça condenou em Presidente Prudente integrantes do PCC pelo crime de tortura — Foto: Stephanie Fonseca/G1

'Contexto intimidador'

Segundo o juiz, “robusta e harmônica” é a prova no sentido que quatro dos acusados, em concurso de agentes, mediante violência física e grave ameaça, causaram intenso sofrimento físico e mental na vítima, no intuito de obterem dela informação, declaração ou confissão de que integrava a facção criminosa denominada “FDN”, rival daquela que os réus integravam, causando-lhe, assim, lesões corporais e sofrimento psicológico.

“Todo o contexto intimidador construído pelos acusados, mediante violência quanto utilizando ameaças, é coerente”, pontua Ferreira.

Ademais, testemunhas protegidas ouvidas nos autos, mesmo correndo risco de suas integridades físicas, reconheceram e asseveraram que os réus, além de incitarem populares a uma espécie de linchamento, sob o pretexto de a vítima ser um estuprador, participaram efetivamente nas agressões físicas e psicológicas perpetradas contra o ofendido, segundo o juiz.

“Destarte, salta aos olhos o intenso sofrimento vivido pelo ofendido, haja vista após ter sido caçado com selvageria e sofrido várias agressões físicas e verbais, cujas cenas de horror foram bem detalhadas por ele quando depôs perante a autoridade policial e em juízo, teve os olhos vendados e foi colocado no porta-malas de um veículo, e em continuidade, conduzido até um matagal, onde os réus receberam ordens por meio de telefone, de um indivíduo de hierarquia superior na facção criminosa que integravam, para investigarem a vítima antes de matá-la”, salienta o magistrado.
“Ressai, ainda, da prova carreada nos autos, que em seguida a vítima foi conduzida a outra localidade, provavelmente uma propriedade rural, onde os questionamentos se ela integrava a facção criminosa ‘FDN’ continuaram. Afirmou a vítima que neste lugar os torturadores não lhe forneceram água, e disseram que permanceria um ano em cativeiro caso não confessasse, o que certamente lhe causou grave sofrimento psicológico, sem olvidar as graves lesões resultantes das agressões sofridas na casa desabitada. Por fim, na dúvida de que a vítima integrava facção criminosa rival, os réus libertaram a vítima nas proximidades da residência de seu genitor”, relata o juiz.

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